4 - Pressupostos teórico-metodológicos

As análises contrastivas serão realizadas, com base em um Corpus Compartilhado, em diferentes perspectivas teórico-metodológicas, levando-se em conta as orientações de pesquisa já consolidadas nas duas instituições envolvidas e visando a responder, em última instância, às seguintes questões:

4.1 - Perspectiva teórica dos investigadores brasileiros

Busca-se integrar a visão sociolingüística laboviana a outras teorias formais ou funcionais. As duas dificuldades inerentes a tal procedimento são, primeiro, encontrar uma maneira de administrar a convivência de visões teórico-metodológicas distintas frente às questões e tarefas da Lingüística atual, no caso, no que tange à natureza, distribuição e explicação da variação e mudança lingüísticas e, segundo, demonstrar a forma pela qual a Sociolingüistica pode contribuir para testar hipóteses teóricas e vice-versa.

O projeto de pesquisa insere-se, assim, em parte, no quadro da Sociolingüística Paramétrica ou Variação Paramétrica.

Da Teoria da Variação ou Sociolingüística advêm os pressupostos teóricos segundo os quais toda mudança implica um período de variação e, uma vez propagada/implementada, produz reflexos/encaixamento no sistema lingüístico e social, isto é, propicia o aparecimento de outras estruturas associadas a ela de forma não acidental. Da Teoria de Princípios e Parâmetros, provém o próprio conceito de parâmetro e os feixes de traços que caracterizam as línguas positiva ou negativamente marcadas.

Parece, pois, que a atuação de várias forças - pressões sociais, estruturais e funcionais -- tem intensidade variável, dependendo do nível da gramática em que uma nova forma aparece, sem que isso signifique que uma se sobreponha em importância à outra. A tarefa que se impõe é tentar captar, na propagação e no encaixamento da mudança, a força desses dois componentes e sua inter-relação na conclusão do processo.

Além disso, toma se, também, como parâmetro a descrição oferecida pelas gramáticas tradicionais mais conceituadas e utilizadas no sistema educacional brasileiro, com o objetivo de observar em que medida os dados empíricos correspondem - ou não - ao padrão por elas estabelecido.

A análise da mudança em tempo real de curta duração já vem sendo realizada no Brasil com a utilização de três corpora do Projeto NURC: o primeiro, oriundo de entrevistas feitas na década de 70; o segundo, proveniente de entrevistas realizadas na década de 90, com locutores já entrevistados anteriormente (Amostra Recontato), e o terceiro, constituído de gravações com novos informantes (Amostra Complementar), sempre respeitada a distribuição por faixa etária e gênero. O segundo corpus possibilita o que Labov denominou de panel study (estudo em painel, que dá conta do comportamento do indivíduo em momentos distintos) e o terceiro, o tipo de análise denominado trend study (estudo de tendências), que dá conta do comportamento do grupo, também em períodos distintos).

Além dos estudos realizados no âmbito da variante culta, realizam-se, também na linha sociolingüística laboviana, pesquisas em tempo aparente que recobrem o plano fonético-fonológico e morfossintático e que visam a detectar as normas em uso na variante substandard, com base em amostras eliciadas do Corpus APERJ e representativas da fala de indivíduos analfabetos e semialfabetizados. Tais pesquisas vêm contribuindo não só para o conhecimento da chamada língua popular, mas também para a aferição dos padrões detectados, hoje, na língua culta, de modo a estabelecer o que constitui inovação no âmbito do Português do Brasil.

A combinação de observações em tempo aparente e em tempo real, em diferentes variedades da língua, constitui o método fundamental de análise da mudança em curso, uma vez que a metodologia quantitativa de cunho laboviano, ao usar informantes distribuídos por faixas etárias, permite, através do tempo aparente, detectar possíveis mudanças em progresso.

Para a análise da mudança em tempo real de longa duração, serão analisados, a princípio, textos da língua portuguesa de diferentes estágios e de diversos tipos: textos jornalísticos de diferentes naturezas (editorias, notícias e anúncios). De início, interessa observar o período que recobre os séculos XIX e XX.

4.2 - Perspectiva teórica dos investigadores portugueses

(a) Estudos lexicais e sintáticos

Na exploração do corpus para estudos lexicais e sintáticos, estabelecer-se-á uma ligação entre a investigação teórica e o desenvolvimento experimental, assente em posições teóricas e descritivistas. Será seguida a corrente teórico-metodológica identificada como data-driven linguistics, na realização dos estudos baseados em corpora orais e escritos, inspirados genericamente nos trabalhos de John Sinclair. Propor-se-ão modelos de caráter indutivo que possibilitem as descrições de fenômenos lexicais, morfossintáticos e sintáticos de diversos usos e variedades do português contemporâneo, observados em contextos reais. A este objetivo corresponde a seguinte ordem de percurso que caracterizará esta vertente do projeto no qual se reutilizarão os corpora já existentes: desenho do corpus - observação e análise sistemática dos dados -; descrição dos fenômenos lingüísticos evidenciados - constituição de modelos data-driven - ; aplicações.

No que respeita mais especificamente aos estudos de sintaxe do português falado, seguir-se-á a metodologia de análise em configurações proposta por Claire Blanche-Benveniste, que tem como fundamentos teóricos os princípios da Abordagem Pronominal (AP). A análise em configurações atrás mencionada toma como unidade de análise sintática o verbo construtor e, sublinhando a inadequação da noção de frase ao discurso oral, quebra a linearidade das transcrições feitas em conformidade com as regras da escrita, permitindo visualizar, em grelha, certos fenômenos discursivos através da exploração dos eixos horizontal e vertical.

Assentes em critérios distribucionais, as configurações representam de forma muito clara a posição que ocupam no enunciado os segmentos da cadeia falada, permitindo observar como o texto se vai desenvolvendo sintagmaticamente e paradigmaticamente e também como se configuram e inter-relacionam aqueles segmentos. A observação que então se pode realizar sobre o eixo horizontal aponta para a sintaxe e compreende o verbo construtor com os elementos construídos e associados à construção verbal; a observação do eixo vertical aponta para o léxico, tornando patentes alinhamentos de palavras ou seqüências produzidas em diversos momentos de enunciação que formam "colunas" de elementos distribucionalmente equivalentes e sintaticamente homogêneos. A AP, em que esta análise assenta, estabelecendo uma relação entre categorias morfossintaticamente definidas - neste caso o verbo e aqueles elementos que tradicionalmente se designam por sujeito e complementos - classifica como elementos construídos pelo verbo os termos daquela relação morfossintática e propõe uma análise das categorias construídas em que se distinguem três graus na relação destes termos com o verbo: um grau forte - termos da valência, um grau fraco - termos de regência e um grau nulo - termos associados (à construção verbal).

(b) Estudos de Morfologia, Morfofonologia, Morfossintaxe

Para o estudo das variantes flexionais, nominais e verbais, adotar-se-á um ponto de vista em que a morfologia, a fonologia e a sintaxe sejam consideradas nas suas interfaces. Numa perspectiva de análise da variação intralingüística (Português Europeu), utilizar-se-ão os materiais sonoros recolhidos pelo Grupo de Dialectologia do CLUL. Numa perspectiva de análise da variação interlingüística (Português Europeu e Português do Brasil, com extensões pontuais ao Português de Moçambique), serão comparados os resultados do estudo anterior com os resultados de um estudo das variante morfológicas atestadas nos corpora brasileiros que a UFRJ disponibiliza para este projeto. A análise das variantes da flexão atestadas nas regiões dialetais de Lisboa e circundantes e do Rio de Janeiro e circundantes (a partir de uma amostragem de informantes falantes do standard e do substandard) enquadrar-se-á no prssuposto laboviano de que a variação e as tendências de mudança lingüística, como evidências sincrônicas, são fenômenos reconhecidamente fundamentais para a descrição das gramáticas das línguas particulares e para a comparação interlingüística. A par da pesquisa desenvolvida nesta trilha, serão tidos em conta os contributos da pesquisa sobre os universais lingüísticos (cf. os trabalhos de Greenberg e seus sucessores). Embora com objetivos diferentes, estas duas vias de investigação completam-se: a variacionista fornece evidências quanto ao que é possível VS impossível dentro de um dado sistema lingüístico; a universalista compara evidências de várias línguas e delas retira princípios gerais de comportamento lingüístico, com grande poder explicativo. Finalmente, e de forma complementar, ter-se-ão em conta os contributos da investigação em Tipologia das línguas românicas: a determinação dos traços que definem as gramáticas das línguas numa perspectiva comparada é fundamental para o estudo da variação interlingüística. No que concerne à comparação de PE e PB com PM, interessa, ainda, considerar os contributos da investigação sobre o contato de línguas.

(c) Estudos de Sintaxe nas variedades padrão e não-padrão

Partindo dos corpora disponibilizados para este projeto pelas duas partes, o trabalho enquadrar-se-á numa perspectiva de análise da variação intra e interlingüística. A pesquisa visa a contribuir para um melhor conhecimento da Gramática Universal, concebida como um conjunto de princípios invariáveis e de parâmetros responsáveis pela variação que as línguas naturais apresentam. O estudo da variação constitui um terreno privilegiado para a verificação e eventual reformulação de hipóteses teóricas, na medida em que torna mais fácil a identificação dos pontos fulcrais da variação lingüística.

4.3 - O Corpus Compartilhado

Os investigadores brasileiros e portugueses desenvolverão as pesquisas com base no Corpus Compartilhado, que abarca as modalidades escrita ( dos séculos XIX e XX) e falada (standard e substandard) de ambas as variedades do Português e que foi constituído segundo os mesmos critérios, de modo a garantir o rigor das análises contrastivas.

O Corpus Compartilhado (cf. Mapa do Corpus Compartilhado) está disponível neste site (cf. Corpora) que, por sua vez, se vincula ao site da linha de pesquisa Língua e Sociedade: Variação e Mudança, do Departamento de Letras Vernáculas da UFRJ.

4.4 - Procedimentos de análise

Propõe-se a realização sistemática de estudos contrastivos, segundo uma mesma metodologia - isto é, os pesquisadores brasileiros analisarão, nos corpora europeu e, eventualmente, africano, aqueles tópicos já descritos no português do Brasil, enquanto os pesquisadores portugueses analisarão, nos corpora brasileiro e, eventualmente, africano, os tópicos já focalizados no português europeu (e, eventualmente, no africano).

Tal procedimento de análise justifica-se, tendo em vista que já há vários estudos que permitem uma caracterização sincrônica da língua portuguesa falada e escrita no Brasil e em Portugal (e de se poder já dispor de alguns trabalhos sobre o Português de Moçambique), mas não numa linha de comparação sistemática.

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